313 setembro/2021

Museu das Memórias (In)Possíveis


Temática

Sobre a Coleção Achutti - Vila Dique

Jaime Betts, Pedro Isaias Lucas e Priscila Chagas Oliveira

Vinte e poucos anos depois de Luiz Eduardo Robinson Achutti ter feito sua dissertação fotoetnográfica(1), que virou livro, Diênnifer Fischer, jovem desconhecida, entra em contato com ele dizendo “Você tem a minha história”. Mas quem é Diêniffer? E que história é essa?

Diênnifer tinha apenas um ano de vida quando Achutti fotografou as pessoas que trabalhavam em uma das primeiras experiências de coleta seletiva de material reciclável do Brasil, Associação que teve lugar na Vila Dique em Porto Alegre/RS. Achutti queria dar sua contribuição teórica e prática para a Antropologia Visual:

Para a parte do exercício visual, fotografei trabalhadoras de uma vila de favela na região periférica da cidade de Porto Alegre, originalmente área de depósito do lixo da cidade, que tem seu cotidiano, suas vidas, suas estratégias de sobrevivência e suas percepções de mundo permeadas pelo lixo, restos e detritos da grande cidade (ACHUTTI, 1997, p. 11).

Achutti desejava unir o seu interesse e atuação na fotografia a seus estudos em ciências sociais e, assim, através de um olhar sensível e comprometido ética e politicamente, registrou o cotidiano desta Vila, seu trabalho, suas formas de organização, de autorrepresentação e estratégias de sobrevivência.

Imagem 1 - O Trabalho

Fonte: Achutti, 1997. Acervo Museu das Memórias (In)Possíveis

Não apenas o livro-dissertação de Achutti continha muito da história de Diênnifer - retratada no colo de seus pais - da vida de seu avô - fazendo a barba de um amigo - como também de várias pessoas que trabalhavam lá na época.

Imagem 2 - Imagens dentro da imagem [Diêniffer no colo de sua mãe]

Fonte: Achutti, 1997. Acervo Museu das Memórias (In)Possíveis

Foi uma experiência muito marcante testemunhar como um livro se tornou um álbum de família, como Achutti e seu olhar foram recebidos por essas mulheres catadoras de materiais recicláveis. A cada visita de Achutti, ele as presenteava com algumas fotografias, e com elas em mãos, Achutti as fotografava novamente… Foram assim muitas imagens dentro de imagens dentro de imagens. Elas sentiram que esse olhar as valorizou, e não foi por acaso, portanto, que esse livro se tornou um álbum de família para Diêniffer, transmitido a ela através das gerações.

Imagem 3 - Imagens dentro da imagem

Fonte: Achutti, 1997. Acervo Museu das Memórias (In)Possíveis

Por outro lado, Diênnifer revelou com seu ato que ela também tinha a história de Achutti, assim como supunha que ele tinha a dela. Achutti demorou 4 anos para conseguir o livro, ou a história (de) para Diênnifer, ele mesmo não tinha mais nenhuma cópia. Foi junto com a Comissão do Museu que se deu o reencontro dos dois. Achutti se sentiu valorizado pelo olhar de Diêniffer, e Dieniffer finalmente recuperou traços da sua história.

Assim, partindo das fotografias de Achutti, em 2019 o Museu foi até a atual localização dos antigos moradores da Vila Dique. A partir disso, foi possível (re)construirmos histórias individuais e coletivas que se entrecruzam e que foram presentificadas por todos a partir das narrativas que se sucederam.

Imagem 4 - O Museu e o reencontro com a Vila Dique

Fonte: Achutti, 1997. Acervo Museu das Memórias (In)Possíveis

Memórias que contam muitas vidas, lembranças esquecidas, histórias de vida e de morte, dos pequenos tesouros ou presentes, enviados anonimamente, que encontravam no meio do material descartado. Já que “toda fotografia é um resíduo do passado” (KOSSOY, 2014, p. 49), a fotoetnografia de Achutti constituiu documentos que cruzam memórias e formam histórias, e elas tecem uma narrativa do que esse trabalho significava e da dignidade que restituía às catadoras: “Não somos lixo! Somos coletoras de material reciclável!”

Hoje não existem vestígios materiais da experiência pioneira de coleta seletiva no local onde ela ocorreu originalmente. Os moradores foram retirados de lá contra a vontade deles para serem realocados em região mais periférica. Sobraram as fotografias, as lembranças e os encontros que elas propiciaram entre moradores, fotógrafo e os integrantes do Museu das Memórias (In)Possíveis, que também foram registrados.

Em novembro de 2019, por ocasião do Congresso Internacional da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA) e Instituto APPOA, “Psicanálise e o espírito de nosso tempo”, realizamos uma exposição física intitulada “Quando um livro se torna álbum de família”, sobre esse reencontro(2), a partir da Coleção Achutti-Vila Dique, construída por meio do material cedido por Achutti. Essa curadoria fez ressoar no presente memórias passadas, ressignificadas, compondo outras narrativas, desenterrando memórias. O Museu das Memórias (In)Possíveis fez parte dessa mediação e hoje compõe tanto a história de Achutti, como a de Diêniffer. Em breve, todas essas histórias não estarão apenas em um livro, mas online, em nosso Museu. Assim, seremos guardiões e transmissores dessa memória coletiva.

Referências bibliográficas

ACHUTTI, Luiz Eduardo Robinson. Fotoetnografia: um estudo de antropologia visual sobre cotidiano, lixo e trabalho. Porto Alegre: Tomo Editorial; Palmarinca, 1997.

KOSSOY, Boris. Fotografia & História. 5.ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2014. 

 

Jaime Betts é psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre - APPOA e do Instituto APPOA - clínica, intervenção e pesquisa em psicanálise. Membro da Comissão do Museu das Memórias (In)Possíveis.

Pedro Isaias Lucas é diretor, roteirista, fotógrafo e montador cinematográfico. Membro da Comissão do Museu das Memórias (In)Possíveis.

Priscila Chagas Oliveira é museóloga formada pela UFRGS, Mestra e Doutoranda em Memória Social e Patrimônio Cultural pela UFPel. Presta assessoria museológica no Museu das Memórias (In)Possíveis. E-mail: priscila.museo@gmail.com

(1) Fotoetnografia é um conceito cunhado pelo próprio fotógrafo, quando da elaboração da dissertação. Para ele: “Explicitei algumas possibilidades de construção de narrativas através de imagens fotográficas contextualizadas que dessem conta de dados culturais numa perspectiva etnográfica”. Disponível em: http://www.ufrgs.br/fotoetnografia/mestrado_achutti/fotoetnografia.htm. Acesso em 11 ago. 2021.

(2) O Museu também realizou um teaser sobre esse encontro sob a direção do documentarista Pedro Isaias Lucas, que está disponível em: <https://youtu.be/4w_rsa4Y_5Y>.





setembro de 2021 - Correio APPOA